03 Agosto 2023
Seis meses após o início das operações emergenciais do governo federal na Terra Indígena Yanomami, um balanço divulgado nesta semana alerta que o garimpo continua ativo em áreas não identificadas nos monitoramentos e que as autoridades precisam mudar a estratégia e ouvir mais as organizações e profissionais que já atuam na região.
A reportagem é de Felipe Medeiros, publicada por Amazônia Real, 02-08-2023.
Apesar da retirada de grande parte dos garimpeiros, muitos deles continuam aguardando o afrouxamento das operações, conforme aponta o balanço de 43 páginas elaborado por três organizações Yanomami. O clima de tensão nas aldeias permanece, com relatos de ameaças aos indígenas.
O documento intitulado “Yamaki ni ohotai xoa! = Nós ainda estamos sofrendo” expõe aumento de doenças e, consequentemente, o número de óbitos, o conflito entre as comunidades, a cooptação de jovens para o crime organizado, o enfraquecimento da agricultura familiar de subsistência, e a dizimação gradativa do povo Yanomami, uma vez que o mercúrio tem limitado a capacidade reprodutiva das mulheres.
O relatório reconhece pontos positivos das operações, principalmente as ações associadas à estratégia de “estrangulamento logístico” e admite que houve redução de garimpo em determinadas áreas, mas detalha que a ação governamental tem falhas. Os indígenas também criticaram informes precipitados de órgãos governamentais, quando autoridades da Polícia Federal anunciaram em tom comemorativo o fim dos alertas de garimpo na TI Yanomami.
“Em junho deste ano, o governo veio a público comemorar o fim dos alertas de garimpo na TIY, depois que o sistema de monitoramento da Polícia Federal ficou mais de 30 dias sem detectar alterações na cobertura florestal que sugerissem a abertura de novas áreas para a exploração mineral. Algumas autoridades chegaram inclusive a declarar que isso significava na prática o fim da atividade ilegal na TIY, depois de pouco mais de quatro meses de operação. Infelizmente, a ausência de novos alertas não significa a neutralização completa do garimpo”, diz trecho do documento elaborado pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME) e Urihi Associação Yanomami.
Segundo o relatório, retornos graduais de pequenos grupos de invasores estão sendo identificados em regiões como Parafuri, Xitei e Homoxi. “Os Yanomami informam que garimpeiros seguem trabalhando próximo às aldeias, sendo abastecidos com alimentação e combustível com voos regulares de helicópteros”, diz trecho.
Outra ação criticada pelas organizações é a decisão do governo de não fechar os acessos ao território indígena para a logística garimpeira e manter aberto três “corredores” com o intuito de viabilizar a saída espontânea dos criminosos ao longo de dois meses, cedendo aos interesses de políticos de Roraima.
“A Operação ‘Escudo Yanomami’ só conseguiu manter a restrição total de voos do garimpo por seis dias. Se por um lado essa opção reduziu os custos das ações de combate à atividade por parte do Estado, por outro, permitiu que muitos financiadores retirassem seus equipamentos da Terra Indígena, sem maiores prejuízos e constrangimentos [com repercussões, inclusive, para as investigações sobre a ação desses grupos criminosos]”, diz o relatório.
Conforme o documento, a invasão persiste e acontece, mesmo em menor escala, por meios de balsa no rio Catrimani e no rio Apiaú. Nesta área, inclusive, foi observada a entrada recente de novas retroescavadeiras. Os indígenas têm uma preocupação especial porque é nessa região que vive um grupo em isolamento voluntário, conhecido como Moxihatëtëma.
Operação Escudo Yanomami em 2023. (Foto: Reprodução | FAB)
O relatório também considerou como “equívoco estratégico” o governo ter relegado às Forças Armadas, no início da operação, apenas a função de apoio logístico para as outras instituições. Segundo as organizações, caso o envolvimento das Forças Armadas tivesse sido planejado desde o início, talvez tivesse sido possível ampliar a capacidade das Bapes (Bases de Proteção da Funai) e planejamento de novas estruturas em outros pontos estratégicos, liberando, por exemplo, os grupos especializados do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) e da Polícia Rodoviária Federal para realizar mais ações nos acampamentos e canteiros ilegais, em vez de ficarem imobilizados nas barreiras dos rios Mucajaí e Uraricoera.
“Foi somente no dia 21 de junho que foi alterado o decreto Nº 11.405, finalmente atribuindo ao Ministério da Defesa a ‘execução de ações preventivas e repressivas contra delitos transfronteiriços e ambientais, na faixa de fronteira terrestre e nas águas interiores, por meio da promoção de ações de patrulhamento, de revista de pessoas, veículos terrestres, embarcações e aeronaves, e de prisões em flagrante delito, entre outras”, afirma o documento.
Ministra Marina Silva e Júnior Hekurari na Terra Indígena Yanomami, em 05 de abril de 2023. (Foto: Reprodução | Ibama)
“O governo atual salvou o povo Yanomami, que estava morrendo, sendo assassinado pelos garimpeiros. Retirou e ainda está retirando os invasores que estão escondidos. Isso é um resultado muito importante e positivo, mas o relatório é um alerta para o governo ficar ligado porque os garimpeiros podem retornar”, afirmou à Amazônia Real Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami (Condisi-Y) e da Associação Urihi.
Conforme detalhou a liderança indígena, o relatório será entregue para várias autoridades. Ele espera que as diversas instituições unam as forças para combater o garimpo ilegal e preservar os Yanomami.
“O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania tem que atuar bastante para acabar esse discurso de ódio. Sofremos muito com esse discurso de ódio feito pelas pessoas nas redes sociais. Queremos que a Funai faça o seu papel, pois se afastou bastante e agora saiu da UTI [Unidade de Tratamento Intensivo]. Mas ainda precisa tomar remédio para acordar, está meio perdida. Esperamos que com esse relatório seja acordada de uma vez”, disse Junior.
Para as organizações indígenas, ainda não há uma resposta efetiva do Estado frente à emergência sanitária do território Yanomami porque falta coordenação das ações. Apesar de estar descrito entre as atribuições do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE-Yanomami) que o planejamento, a organização, a coordenação e o controle das medidas seriam adotadas durante a ESPIN (Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional) na TIY, os fatos observados pelas entidades demonstram o contrário.
“A insegurança em áreas sensíveis, mesmo depois de vários meses de operação, demonstra exatamente a falta de coordenação entre as ações de combate ao garimpo e a tentativa de recuperar o sistema de saúde, posto que estas deveriam ser as zonas de atuação prioritárias”, diz o documento.
Em relação à ajuda humanitária, o relatório aponta “uma série de deslizes associados à forma de distribuição”, ausência de protocolo de entrega de cestas básicas e falta de plano de distribuição. Segundo os indígenas, as cestas se concentraram em torno das pistas de pouso com maior capacidade de carga, deixando muitas comunidades remotas desassistidas e famílias com conhecida situação de insegurança alimentar descobertas.
“Uma das reclamações apresentadas foi que a ausência de uma mediação na distribuição levou a um processo de concentração das cestas nas mãos das famílias que deram a 'sorte' de estar no local da entrega, no momento em que a alimentação foi doada”, diz o documento. Houve ainda casos de cestas que ficaram estocadas no pelotão de fronteira, como aconteceu na região de Auaris, com demora na distribuição, levando os produtos a ficarem estragados para consumo.
Para os indígenas, o governo precisa ampliar as ações de saúde, descentralizando da região de Surucucus os atendimentos. “Há uma grande concentração de força de trabalho em Surucucus para dar suporte ao Centro de Referência em Saúde, enquanto a maioria dos polos está com equipes subdimensionadas, ou mesmo atendidos apenas por missões de sete dias, que sequer possuem regularidade quinzenal”, diz o documento. Desta forma, ações de rotina como vacinação e pesagem de crianças sofrem atrasos, e tratamento de malária não seja realizado.
Na parte de ação territorial, não se vislumbra a ampliação de Bases de Proteção (Bapes) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Por enquanto, as bases têm como prioridade os rios Uraricoera e Mucajaí, onde está concentrada a maior parte da atividade de garimpo. Mas para os indígenas, essa concentração pode produzir o efeito de “vazamento” para outras calhas, como as dos rios Catrimani, Apiaú e Uraricaá.
Estevão Senra, um dos autores do relatório, diz que a Casa Civil da Presidência da República tem capacidade de aglutinar as demais instituições responsáveis pelo combate ao garimpo ilegal e trazer solução para os problemas enfrentados pela população Yanomami.
“O ministério que tem mais capacidade de articulação e que deveria chamar essa responsabilidade é a Casa Civil, e que teve uma participação mínima. Talvez se tivesse mais participação seria mais efetivo nesta coordenação, principalmente, com outras pastas mais afastadas da questão indígena”, analisou Senra, que é pesquisador da organização Instituto Socioambiental (ISA).
Conforme avaliação de Senra, o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) tem muitas dificuldades para enviar profissionais às regiões que não estão estabilizadas. Nesta quebra de braço acaba que fica um empurra-empurra dos problemas entre as instituições que deveriam estar coesas sob uma coordenação guarda-chuva, com força suficiente de agregar todas.
“Para as regiões descobertas pela equipe de saúde ficarem seguras teria que ter uma ação da Polícia Federal, Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis] e Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Mas quem é que vai dizer ‘atua aqui, limpa essa área e permaneçam por 30 dias com forças de segurança?’ A segurança está fazendo seu trabalho, mas falta um olhar mais estratégico para os locais mais vulneráveis. Às vezes a priorização não é a área com mais concentração de pessoas, mas a mais sensível, onde se precisa garantir uma ajuda humanitária mais rápida. Falta esse tipo de análise”, enfatizou Senra, que convive há dez anos com os Yanomami.
“O garimpo trouxe fome, malária e morte para os Yanomami. Com esse impacto no meio ambiente vai demorar bastante para se recuperar. Tem buraco igual na Serra Pelada. Vi um no Homoxi e sofri bastante, estamos sangrando, uma cicatriz recente e que vai demorar aproximadamente 30 a 50 anos para floresta crescer, isso se o Estado nos acompanhar, continuar a fiscalização e a Funai acordar e nos proteger e defender como manda a Constituição Federal”, desabafa Junior Hekurari.
As escavações deixadas pelo garimpo têm contribuído para o aumento da malária na área indígena porque acumula água parada, sendo foco de criadouro do mosquito que transmite a doença. Segundo dados oficiais, “até julho de 2023 já haviam sido registrados 12.252 casos, o que corresponde a quase 80% do total registrado em 2022”, cujos números sugerem subnotificações. Os maiores índices foram registrados este ano em Auaris, Surucucu, Maloca Paapiu e Palimiu.
A segunda causa de mortes é a desnutrição entre crianças menores de cinco anos. Um documento do Ministério Público Federal (MPF) aponta que esse tipo de óbito quase dobrou nos últimos oito anos, com picos em 2020 e 2022. Uma das observações feitas pelas lideranças indígenas a respeito dessas mortes é a falta de acompanhamento dos pacientes. A fragilidade da população na TIY é ainda mais acentuada pela ausência de imunizações. “Até 7 de julho, apenas 23 das quase 350 comunidades haviam sido imunizadas”, diz o relatório.
Além da destruição da floresta, do mercúrio que torna as mulheres inférteis e má formação dos fetos, da água suja disponível para beber e da roça destruída pelos garimpeiros, Júnior ressalta que precisa ser reestruturada a saúde, com a contratação de mais equipes para atender todas as comunidades do entorno de Surucucu, local que concentra as ações de saúde.
Os dados mostram que das 65 unidades básicas de saúde da TI Yanomami, seis estão completamente fechadas. São elas: Hakoma, Homoxi, Kayanau, Parafuri, Õnkiola e Alto Catrimani, que somam uma população de 2000 pessoas desassistidas.
“Tem que replanejar, reestruturar as ações porque tem muitas comunidades que ainda não receberam atendimento de saúde por conta da distância, pois são quatro a sete dias andando, comunidades que recebem visita a cada dois meses. Isso não é um trabalho de saúde. Estamos enfrentando muita malária e desnutrição. É preciso replanejar, reestruturar, não só apagar o fogo, tem que ter atendimento permanente”, pediu Junior Hekurari.
Desde 2018, a Hutukara utiliza o Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal da TI Yanomami, em uma análise de processamento de satélites independente, para detectar as áreas impactadas, e até dezembro de 2022, observou-se um crescimento de mais 300%, atingindo um total de 5053,82 hectares de área devastada.
Um croqui traçado pelas lideranças indígenas mostra que nas regiões do Parafuri, Xitei e Homoxi os garimpeiros seguem trabalhando próximo às aldeias. A Amazônia Real mostrou com exclusividade a garimpagem noturna para fugir da fiscalização.
Neste ano, a Hutukara foi proibida de continuar com o “levantamento aéreo, pois o Comando de Ações Aeroespaciais (COMAE/FAB) negou a autorização para o voo de monitoramento, após uma solicitação formal, em junho”, conforme relatado no documento.
Mas uma semana antes da organização formalizar o pedido para o COMAE, diz o relatório, “as Forças Armadas organizaram uma visita a Surucucu, seguida de um sobrevoo, com convidados da imprensa com a intenção de propagandear uma suposta neutralização da atividade garimpeira”.
Garimpeiros no rio Apiaú. (Foto: Reprodução | Redes sociais).
O documento apresenta 32 recomendações para que as autoridades do governo federal melhorem suas ações na terra indígena. Entre elas, um maior diálogo com as organizações e um cronograma para os planos de ação regionalizados para as regiões sensíveis que incluam a neutralização do garimpo, apoio emergencial, promoção à saúde, reocupação das UBSs com apoio de forças de segurança, e desenvolvimento de atividades de recuperação socioeconômica das comunidades.
Pede que seja garantida a manutenção do controle do espaço aéreo por tempo indeterminado, reforço no monitoramento nas zonas de fronteira, fiscalização regular do comércio de combustível de aviação em Roraima e no Amazonas e de aeródromos privados situados nos arredores da TI Yanomami, com especial atenção nos projetos de assentamento Samaúma e Vila Apiaú. Neste contexto também pede a destruição total do maquinário utilizado na extração de ouro e da cassiterita aliada a aplicação das respectivas sanções administrativas.
Recomenda também a inutilização de todas as pistas de pouso clandestinas e aeronaves apreendidas no interior da TIY, reforço às bases de proteção Walopali, Serra da Estrutura e Ajarani, urgência conclusão da base do Uraricoera e criação de outras novas nos rios Apiaú, Catrimani e Urariá, citados pelos indígenas como novos corredores dos garimpeiros.
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Relatório Yanomami aponta falhas para retirar garimpeiros e pede mais diálogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU